Sem florear, Amílcar Filho garantiu que o pai só foi para o Palestra porque o avô não ganhou um bar
O Palmeiras festejou 100 anos de existência em agosto. O Corinthians celebra 100 anos do primeiro título de sua história – conquistado no Parque Antarctica – neste sábado. Em um prédio verde e branco do bairro do Cambuci, mora um corintiano de 89 anos que tem uma ligação carnal com essas duas comemorações.
Amílcar Barbuy Filho só não se tornou jogador de futebol porque não queria desonrar o seu nome. O pai foi um dos líderes do Corinthians, clube então com quatro anos de idade, na campanha invicta do Campeonato Paulista de 1914, organizado pela Liga Paulista de Futebol (LPF). Foi o primeiro troféu da extensa galeria corintiana, uma conquista grandiosa a ponto de o filho almejar a inauguração de um busto no Parque São Jorge como homenagem. Mas aquele ídolo também se tornou personagem central das glórias iniciais do Palestra Itália, que originou o rival Palmeiras.
“Ele jogava pelo Palmeiras com toda a hombridade e caráter que tinha. Mas jamais deixou de ser corintiano. Tanto é que o pessoal conta que ele atuava pelo Palestra Itália vestindo a camisa do Corinthians por baixo”, divertiu-se Amílcar Filho, para quem o ex-jogador confidenciava as alegrias e os tormentos da carreira. “Essa história da camisa é mentira”, sorriu.
A verdade é que o manto sobre o corpo de Amílcar Barbuy, na hora de sua morte, foi alviverde. Falecido em 24 de agosto de 1965 (em decorrência de complicações de uma cirurgia na perna), somente dois dias antes do aniversário de fundação do Palestra Itália, o ex-jogador recebeu uma bandeira do Palmeiras para cobrir o seu caixão.
“O Corinthians só mandou uma carta, com cumprimentos. Não trouxe esses escritos para cá... Agora, o Palestra, não. Deu uma bandeira, e ele foi enterrado assim”, contrapôs Amílcar Filho, sem rancor do clube do seu coração. “Eu era pequeno. Veja você: quando fomos para a Itália, em 1930, eu tinha só sete anos.” Naquela época, o pai havia se transferido para defender – dentro de campo e como treinador – a Lazio no futebol europeu.
Atualmente, no entanto, Amílcar é muito mais lembrado por seus feitos como corintiano. Não é para menos. Primeiro jogador do Corinthians a defender a Seleção Brasileira, em 1916, ele atuou pela equipe 208 vezes, entre 1913 e 1923. Ainda é um dos treinadores que mais trabalhou pelo clube, em 217 ocasiões.
Reconhecendo o valor de Amílcar, o Corinthians convidou os seus dois filhos para a exposição da taça do Campeonato Paulista de 1914 em local de destaque no museu do Parque São Jorge. No domingo, antes do clássico contra o Santos, eles pisarão no gramado do estádio de Itaquera com o troféu e serão aplaudidos pelos torcedores.
O "galã" Amílcar Barbuy, como definiu o filho, conquistou o Palestra depois de brilhar com Neco
“Pelo menos... É um momento de muita felicidade, sabe? Porque não estão reconhecendo a mim, mas ao meu pai”, disse Amílcar, não plenamente satisfeito. “Ainda faltam muitas coisas. Por exemplo, o meu pai é o único dos grandes jogadores corintianos, creio eu que um dos maiores, que ainda não tem a sua estátua no clube. A imagem dele está só no Memorial. Já me falaram que pediram essa homenagem, mas ninguém mais sabe de nada”, lamentou.
Seis são os jogadores que já receberam a honra de ter as suas imagens retratadas em bustos no Parque São Jorge. O primeiro deles foi Neco, artilheiro daquele Campeonato Paulista de 1914. “Quem fez o Neco foi o meu pai. Quando o Amílcar chegou ao Corinthians, vindo do Botafogo do Bom Retiro com o irmão do Neco (César Nunes), o Neco jogava nos segundos quadros do Corinthians. Foi o meu pai quem o puxou para cima. Os dois se tornaram bem próximos. Hoje mesmo, quando você busca imagens na internet, os dois formam uma dupla”, recordou o filho de Amílcar.
Neco ganhou o seu busto em 1929, época em que Amílcar estava no Palestra Itália. Anos depois, o Corinthians concedeu a mesma honraria a integrantes do time campeão paulista de 1954, o histórico título do Quarto Centenário – Cláudio, Luizinho e Baltazar. “Sabe que o meu pai morreu 11 anos depois dessa conquista, né? Mas ele dizia que, apesar de todos os jogadores que o Corinthians teve, aquele quadro do Quarto Centenário foi o melhor. Concordo com ele. O Luizinho era um diabo”, respeitou o herdeiro da família Barbuy.
Mais recentemente, já na gestão do presidente Mário Gobbi, houve festas para as inaugurações dos bustos de Sócrates e Rivellino no Corinthians. O último conta com a admiração de Amílcar Filho, que dividia a quadra do Clube Atlético Indiano com o pai de Riva. “Mas não creio que tenham sido figuras tão expressivas como o meu pai. Bom, Ele sabe o que faz”, conformou-se o senhor de 89 anos, apontando para o céu.
Rivellino tinha uma ligação afetiva com o Palmeiras, assim como ocorreu com Amílcar Barbuy, descendente de italianos. O campeão mundial de 1970 foi criado em uma família de palmeirenses, porém deixou de torcer pelo clube da Pompeia quando foi rejeitado na infância. Rumou para as categorias de base do Corinthians e tornou-se ídolo, mesmo sem títulos expressivos.
Amílcar Filho guarda com carinho as lembranças do pai, como a foto em uma das primeiras Seleções Brasileiras
Já o centromédio Amílcar Barbuy virou a casaca em 1923, porém seguiu o caminho inverso. “Ele nunca quis sair do Corinthians. Você quer que eu te explique o motivo de isso ter acontecido?”, perguntou o filho, com a voz trêmula, como se fosse revelar um segredo. O assunto foi tabu, mesmo na família, por muito tempo.
“O ano é 1922. A Seleção Brasileira conquista o seu segundo título da Copa América, e o Corinthians é o campeão do centenário (da Independência do Brasil). De 1922 para 1923, o Corinthians começa a mudar a sua sede na Florêncio de Abreu para uma nova. Na antiga, o meu avô, depois de deixar a marcenaria, mantinha um barzinho. Então, o que o meu pai fez? Pediu para o meu avô ganhasse um bar na nova sede”, rememorou Amílcar Filho.
O Corinthians não atendeu ao pedido. “Deram o bar para outro! Meu pai, magoado, saiu do clube mais ou menos em 1923. E o que aconteceu? Ficou quase um ano esperando que o Corinthians simplesmente o chamasse de volta. Nesse meio tempo, o Palestra Itália apareceu – porque ele era sócio do Palestra, assim como todos os imigrantes italianos –, e o meu pai foi para lá.
Dizem que havia motivos desconhecidos para essa troca, o diabo. Mas, não. Os motivos são bem conhecidos, e eu espalho essa verdade para todo o mundo. Porque ele não falava. Não queria tocar no assunto”, disse o filho.
O silêncio de Amílcar Barbuy em torno da polêmica contrasta com a emoção de Amílcar Barbuy Filho. Com lágrimas nos olhos, o torcedor corintiano defendeu a paixão do pai – e de toda a sua família – pelo Corinthians.
Já como técnico, Amílcar Barbuy treinou o Antarctica, time em que jogou o corintiano Jaú (último agachado)
“Com toda a sinceridade, não me pergunte de onde vem essa paixão. Isso está dentro da gente. Não adianta explicar o que é inexplicável. O meu pai se tornou corintiano, pois o Corinthians não existia quando nasceu. Agora, eu, não.
Eu nasci corintiano! O meu tio, Hermógenes, foi quem desenhou os primeiros escudos do Corinthians. A segunda irmã deles, Carmela, era casada com Albino Teixeira Pinheiro. Você sabe quem ele foi? Um dos primeiros presidentes do Corinthians, em 1919. Só não ficou mais tempo no clube porque tinha uma tipografia que o absorvia muito. Por tudo isso, eu falo: o Corinthians é um membro da família também”, orgulhou-se um emocionado Amílcar Filho.
O Palmeiras se tornou um primo distante da família Barbuy. Cem anos depois daquele título de 1914, o filho do parceiro de Neco se permitiu imaginar o que o pai sentiria se fosse vivo. “Ele gostaria muito de ter visto os dois títulos mundiais do Corinthians!”, sorriu o corintiano Amílcar, sem mentir ao confirmar que o ídolo enterrado como palmeirense também se satisfaria com conquistas do clube alviverde. “É... Sempre, né?”, admitiu, desinflando o busto.
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