Março de 2013. O Palmeiras está na Argentina e, no aquecimento para a partida contra o Tigre, Jorge Valdívia ouve desaforo da torcida e mostra o saco, xinga de volta, dá o dedo, certo de que está acima das críticas mesmo com o clube na segunda divisão.
O Palmeiras perde a peleja no minuto final. Kleber, centroavante infame, admite na saída que foi "displiscente". Sem sono e com fome, a torcida que viajou à Argentina resolve retomar as reivindicações na manhã vindoura, agora no aeroporto e sem o empecilho de alambrados.
O meia chileno era o alvo da ira. Não se mostra o saco ao torcedor rebaixado que saiu do país para te ver. Violência em grupo é covardia sem defesa. Dois erros em seus corners prontos para o conflito. A segurança do aeroporto de Buenos Aires impede um embate mais pesado. Protegidos, os jogadores se tornam alvos de objetos voadores. Fernando Prass protege Valdívia. Um copo explode na parede e ele vira o rosto. Neste momento, uma xícara atinge sua cabeça.
"Jogaram uma xicara no Valdívia e acertou em mim. Levei três pontos na cabeça e tive um corte na orelha. Embarco para o Brasil daqui a pouco”.
Dois dias depois, numa destas coincidências da vida, Valdívia foi diagnosticado com uma lesão e não jogou mais a Libertadores. Fernando Prass continuou na equipe titular.
Era o destino
Dias depois da xícara no aeroporto, Fernando Prass, contratado naquela temporada, tomou seis gols do Mirassol. Passou os quatro anos anteriores no Vasco e viu, do outro lado do campo, na Libertadores de 2012, Diego Souza perder o gol contra Cássio. Não foi capaz de espalmar a testada de Paulinho. Mais cinco minutos e encararia, fora de casa, o Corinthians em uma disputa por pênaltis. Não era a hora.
"É claro que a questão financeira pesou, também. Mas algo me dizia que o caminho certo para mim estava aqui no Palmeiras. Houve um clube que queria me tirar daqui, antes mesmo de eu ser apresentado. Aí me deu um estalo. Pensei: 'Não, eu vou jogar no Palmeiras'. Era meu destino estar aqui".
Prass, então camisa 25, se contunde, tal qual Velloso em 1999, e se junta ao ainda, er, lesionado Valdívia. Mas Bruno, o substituto, não é São Marcos, e o Tijuana nos elimina graças a uma falha medonha do goleiro que nunca se recuperou.
Um Ituano no caminho
A contusão de Prass aconteceu na última rodada da primeira fase do estadual de 2013, contra o Ituano. Bruno entrou no seu lugar e falhou no gol da vitória do rubronegro. Até então, aos 44 do segundo tempo, o Ituano estava rebaixado. Livrou-se e agradeceu o presente.
No ano seguinte, Palmeiras e Ituano se encontraram na semifinal estadual. Por incrível que pareça, novamente Fernando Prass se contundiu na partida. Bruno, outra vez, entrou. O Ituano, que poderia estar rebaixado, nos venceu e foi, duas semanas depois, campeão, contra o Santos, nos pênaltis. Não era a nossa hora.
Em 2015, Ituano e Palmeiras se encontraram de novo na última rodada da fase regular. Foi o único jogo de Aranha na temporada. Contratado para evitarmos o déficit técnico na posição que nos aterrorizou em 2014 depois que Prass fodeu o cotovelo no Maracanã, Aranha atuou na partida-tabú do titular. Ituano, nunca mais.
O time reserva empatou em Itu e colocou o Palmeiras no chaveamento do Corinthians."Acabou, Petros".
Camisa 1, sim senhor
"Já vi tantos nomes colocados aqui no Palmeiras, que estavam chegando goleiro, atacante, lateral. De 100 nomes, só chegaram 10. Se o Aranha é uma boa para o Palmeiras? Essa é uma pergunta difícil. Se acharem que a posição está carente…”
Em janeiro de 2015 questionavam até a titularidade de Fernando Prass, que virou o camisa 1 de fato e direito. Viveu o drama de 2014, primeiro na frieza do departamento médico, pior lugar do mundo para qualquer jogador decente, e, nas 12 partidas finais, debaixo das traves mais bombardeadas do mundo naquela primavera. Em 2013, viveu aquele pudim de pimenta que é a Série B, mezzo pressão, mezzo marasmo. Não abriria mão da meta neste ano.
Em dois anos, brigou com o corpo como todos que passam dos 30 e poucos, brigou contra a cornetagem sobre seu suposto alto salário, a desconfiança por suas lesões, até com o preconceito com goleiros que vêm de fora. Entrou 2015 com uma real sombra sentada no banco de reservas. Nocaute: teve um ano impecável no gol, nos microfones, na liderança exercida no vestiário.
Ah, e voz ouvida e respeitada no único contundente movimento de jogadores de futebol no país, reivindicando, no mínimo, bom senso da CBF. Tem, claro, quem torça o nariz para ele (e vista a camisa 9, veja você, da seleção).
Para sempre
No começo era tudo uma xícara voadora que lhe rendeu três pontos. Três pontos, unidade de medida destinada a quem ganha jogos em competições de pontos corridos, inexistentes na hora do mata-mata, da ida e da volta. De lá pra cá deu tempo do Prass conhecer melhor quem era o chileno que ele defendeu naquele aeroporto e quem é o Palmeirense que ele encontrou na Bahia, no Paraná, em Goiás, em qualquer canto. Escolheu um dos dois tipos para representar.
Representou como poucos, Fernando Prass. É de se duvidar, pois o mundo de hoje convida os prudentes à duvida, dada a ostensividade do telão que elenca defesas, da TV em HD e slow motion, essa metalinguagem maluca diária que distrai. Prass, hoje, é certeza que nenhuma alegoria desvia.
No começo do ano, o camisa 1 aparecia no telão pedindo adesão ao programa de sócio-torcedor. Sempre fui dos que acham que é o torcedor quem pede coisas ao jogador, e não o contrário. No fim do ano, o camisa 1 aparecia no mosaico da torcida que pedia alma ao time em campo. Sempre fui dos que acreditam que jogadores entendem o que a torcida deseja, embora alguns se façam de sonsos. A nova geração de boleiros tem destruído esta crença, mas Prass não pertence a ela.
Fernando Prass pertence ao grupo de jogadores para sempre do Palmeiras. Eu acabara de pedir à Fernanda (que não é Prass) que cortasse a fita amarela que estava em meu pulso há dois anos quando o alto-falante anunciou que "a quinta cobrança é de Fernando Prass". Naquela fita estava o pedido de título que eu, me antecipando em um gesto de contrassuperstição, abri mão espontaneamente, me proclamando satisfeito, orgulhoso, absolvido deste peso horroroso que é passar sete dias entre os jogos de ida e de volta de um mata-mata valendo taça sem tocar de verdade a vida.
O cara quis bater o quinto pênalti. Uma taça, cheia de vinho, lhe cai muito melhor que uma xícara estilhaçada, meu goleiro.
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